Márcia
Artesã de canções
Talvez poucos se lembrem. Talvez muitos não saibam. As primeiras vezes que ouvimos a voz de Márcia, em disco ou em concerto, foi a bordo de um grupo de dança à moda antiga. Era dela a voz de candura nostálgica que se ouvia nos temas da canção ligeira e romântica com que o Real Combo Lisbonense encenava um regresso a uma época em que a música portuguesa revelava tiques tímidos de twist, yé-yé e rock’n’roll. Canções que, à época da sua criação original, eram banda sonora para dançar e ser adolescente num país que tentava enganar (por umas horas) os muros altos que se erguiam à sua volta. Em 2008, quando João Paulo Feliciano montou o Real Combo Lisbonense, era só a nostalgia dessa música, como que libertando-se de um tempo que já não existe, que se ouvia Márcia interpretar em “Sensatez” ou “O Fado É Bom para Xuxú”.
É mais ou menos aqui que começa a parte mais visível desta história. Márcia já tinha passado pela típica primeira experiência juvenil nos palcos da música com a banda Ana’s Blame. Foi com esse projecto que participou na colectânea Bandas de Garagem, em 2001; foi na sequência dessa gravação que apareceram os primeiros convites para se juntar ao catálogo de multinacionais que não demoraram a identificar um talento em bruto que precisava apenas de meia oportunidade para se manifestar;(...)
Assim que Márcia voltou de um estágio de cinema documental em Barcelona, Feliciano tinha à sua espera o Real Combo Lisbonense e a editora Pataca Discos. Com o Real Combo pôde começar a pisar os palcos dividindo a atenção e não sofrendo com os holofotes (que a deixavam a arder de vergonha quando se apresentava em palco sozinha com a guitarra). Foi um tempo de maturação que ajudou Márcia a preparar o seu primeiro momento de revelação com o lançamento, também em 2009, de um EP na então Optimus Discos – projecto editorial dirigido pelo mesmo Henrique Amaro que a chamara a integrar a compilação Novos Talentos Fnac 2009. Eram cinco canções simples, despidas, voz e guitarra a bastarem-se uma à outra, o sinal inicial de que o seu perfil de cantautora se alinhava com a melhor tradição dos singer-songwriters norte-americanos, as palavras fugidas de qualquer narrativa demasiado concreta, mas envolventes a ponto de sentirmos que éramos puxados para a sua intimidade. Eram cinco canções que soavam a cinco segredos. Um deles chamava-se “A Pele que Há em Mim”.
E é, de facto, uma questão de pele. Voltando a ouvir essa canção em estado virginal, num tom confessional, de quem acabou de acordar para um novo dia ainda a processar emocionalmente os acontecimentos da véspera, os pés ainda mal fora da cama, essa capacidade de Márcia se meter debaixo da pele de quem ouve e agitar os cordelinhos das emoções é tão flagrante que não há como ter defesas para o seu canto e o encantamento que produz. É dessa simplicidade de se meter por atalhos, de não complicar canções que são tão garbosas que não precisam de disfarces alguns, que vem muito do seu poder de sedução. (...)
Não há em si nada de industrial ou de escrita fácil e de mera reprodução de fórmulas ganhas. Há antes o respeito por cada tema e um investimento tão pessoal e cuidado que se torna impossível não nos sentirmos íntimos dela e não nos convencermos que partilhamos consigo os nossos dias. Como só acontece com os maiores escritores de canções.
Gonçalo Frota (Excerto)